Publicado em 1818, e considerado o primeiro livro de ficção científica de todos os tempos, Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, apresentou ao mundo da literatura uma das figuras mais icônicas do terror, que acabou sendo imortalizada no cinema e no teatro. A Criatura, com sua aparência grotesca, alta, pálida, com parafusos no pescoço e a pele costurada, tornou-se uma imagem cravada na cultura popular. Sem dúvidas — principalmente para a época de sua publicação — uma figura bastante horripilante.
Nesse clássico, Mary Shelley conta a história de como Victor Frankenstein, um jovem acadêmico entusiasta da ciência natural, decide construir e dar vida a uma criatura, dando início a uma conflituosa perseguição entre criador e criação.
Contexto da obra

A obra foi publicada três vezes: a primeira edição, dividida em três volumes, foi publicada anonimamente em 1818, devido ao preconceito acerca da escrita feminina. A segunda edição, de 1823, em dois volumes, agora continha o nome de Mary Shelley como autora.
Quanto à última edição, de 1831, já em volume único, surgiu após uma longa revisão. Hoje é a edição mais conhecida, rendendo adaptações não apenas para o teatro e o cinema, mas também para quadrinhos, programas de rádio e séries.

No período da publicação de Frankenstein, a Inglaterra se encontrava em uma Revolução Industrial repleta de experimentos de galvanismo, como os conduzidos pelo médico italiano Luigi Alyisio Galvani (1737–1798), que usava a eletricidade para ativar os membros de animais e humanos mortos. Reconhece alguma coisa? Sim, esta inspiração é frequentemente referenciada em filmes que adaptam a obra de Mary, como no filme de animação Frankenweenie (2012), de Tim Burton.
A origem de Frankenstein

A autora de Frankenstein escreveu a icônica narrativa em um verão de 1816, quando estava em uma casa à beira do lago Léman, na Suíça. Estava acompanhada de seu companheiro Percy Shelley, Claire (sua meia-irmã), o famoso poeta Lord Byron e o Dr. Polidori, que nessa mesma ocasião, escreveu O Vampiro (1819), uma das primeiras histórias de vampiros publicadas em inglês.
Durante uma noite chuvosa naquela casa, Lord Byron propôs um desafio que marcaria a história da literatura: cada um deveria escrever uma história de terror, para decidirem quem era o melhor. Mary, relutante, aceitou o desafio, mas passou dias sem ter uma ideia.
Um dia, ouviu uma conversa entre Byron e Percy diante da lareira sobre os avanços dos experimentos galvânicos. Assim, uma imagem surgiu em sua mente: um corpo humano deitado dando sinais de vida, enquanto seu criador observa o horror de sua criação. Ele foge amedrontado e, ao retornar, vê que a criatura sumiu. Como resultado, Mary Shelley soube exatamente o que escrever.
A estrutura de Frankenstein

A estrutura do livro, dividida em três perspectivas, propõe um aspecto tão intrigante quanto seu enredo. Todas as perspectivas compõem o fato de que Victor Frankenstein criou uma criatura monstruosa, que se perdeu em si mesma e sucumbiu à violência.
A história começa quando um homem desconhecido, à beira da morte, é resgatado por uma tripulação de um navio atolado no gelo, durante uma forte nevasca. O capitão do navio, Walton, o acolhe e dá todos os recursos para mantê-lo vivo.
Naquela mesma ocasião, próximo ao navio, eles avistam um trenó sendo puxado por cães, que logo desaparece de vista. Via-se que uma pessoa enorme montava o trenó, o que intrigou e até assustou o capitão, que então vai até o homem e menciona o ocorrido. O homem demonstra uma grande angústia e arrependimento, até que resolve contar sua história.
Victor é um jovem estudante de química e filosofia natural, que passa a simpatizar com estudos não convencionais de sua época. Ele fica obcecado por uma ideia que rodeia sua cabeça: criar uma vida.
Ele passa a estudar anatomia, matéria viva e morta. Tudo. Anos depois, ele descobre como dar vida a algo morto e inicia um intenso isolamento para dedicar-se inteiramente à sua criação, formada por uma série de partes cadavéricas.
“Por isso me privei de descanso e saúde. Eu o desejei com um ardor que excedeu a moderação; mas agora que terminei, a beleza do sonho desapareceu, e um horror e um desgosto sem fôlego encheram meu coração.”
A narrativa e as diferenças em adaptações

É importante perceber que, até este ponto da história, a narrativa nos dá uma série de eventos que vão da misteriosa aparição vista pelo capitão Walton e sua tripulação à Criatura criada por um cientista completamente obcecado, questionando onde está e quem é.
A narrativa se mostra astuta nesse aspecto, e nos leva por vários caminhos e perspectivas sem nos confundir com as informações dadas, e nos faz refletir sobre abandono paterno e crise de identidade.
Uma das principais discrepâncias entre todas as adaptações desta obra é o fato de que, em nenhum momento da narrativa, é dito o nome da criação de Victor Frankenstein, fazendo com que o Monstro ou a Criatura seja conhecida pelo sobrenome de seu criador.
Outra diferença importante está na aparência. No livro, Shelley descreve a Criatura como um ser de traços quase humanos, mas desproporcionais e perturbadores, o que causa repulsa em quem a vê. Já nas adaptações, essa complexidade se reduz ao esteriótipo visual, que reforça apenas a imagem de monstro.
Além disso, no livro, o Monstro é um ser que tem a capacidade de pensar e agir como qualquer ser humano. Em quase todas as adaptações, é representado apenas como um ser irracional, monstruoso e de violência descontrolada. Uma diferença inegavelmente contrastante.
A criatura solitária

Victor percebe que o que havia feito era abominável e decide fugir para longe antes da Criatura acordar. Quando sua criação enfim desperta, percebe-se absolutamente sozinha, confusa e perdida em um mundo totalmente novo. A narrativa toma um tom um pouco mais poético e filosófico, ao descrever as sensações de tudo ao redor. Na verdade, o ar filosófico é bastante persistente durante toda a trama.
A Criatura chega a um chalé de uma pobre família camponesa e começa a aprender tudo sobre os humanos, escondendo-se em um casebre. Após aprender o idioma e costumes da família, além de clandestinamente ajudá-los, decide finalmente se apresentar de verdade. O Monstro entra e conhece um velho cego que mora ali, que não fica horrorizado porque não o vê. O velho o acolhe e eles conversam.
Contudo, durante a conversa, os outros membros da família aparecem e, para a tristeza do Monstro (e para a nossa, mesmo que esperássemos que fosse acontecer), eles o repreendem e o expulsam dali.
“A partir daquele momento [ele] declarou guerra eterna à espécie, e mais do que tudo, contra [Frankenstein] que o havia formado e o enviou para esta miséria insuportável.”
Ao conseguir fugir para seu casebre, a Criatura sente uma imensa raiva e ateia fogo em tudo. Enfurecida, vai atrás de Victor Frankenstein, seu criador, pois já não suportava que as pessoas o julgassem pela aparência antes que o conhecessem de verdade.
No caminho, encontra um garoto que se assusta ao vê-la, e que acaba revelando ser filho do Sr. Frankenstein. A Criatura, reconhecendo o nome de seu criador, mata o garotinho em um acesso de fúria. Uma investigação começa a partir desse assassinato e a criada da família Frankenstein é condenada à morte.
Quem é o verdadeiro monstro?

Ao encontrar Victor, a Criatura conta toda a sua história, desde quando acordou, fugiu, escondeu-se, aprendeu, foi repreendida e matou seu irmão. Victor, angustiado e frustrado consigo mesmo, sentia mais raiva.
A Criatura promete que só irá embora se ele criar uma fêmea para lhe fazer companhia. Já que era um ser abominável para o mundo, que seu criador fizesse então um ser igual, para que não fosse o único. Um ser com os mesmos defeitos, as mesmas características.
“Estou sozinho e miserável: o homem não se associará a mim; mas uma pessoa tão deformada e horrível como eu não se negaria a mim. Minha companheira deve ser da mesma espécie e ter os mesmos defeitos. Este ser você deve criar”
Victor aceita a proposta. Ele começa sua criação e, no meio do processo, viaja para a Inglaterra para se casar com Elizabeth. Entretanto, enquanto estava na ilha de Órcades e dava continuidade à sua segunda criação, viu que todo seu trabalho era agora sujo demais. Achava mais horrível e irritante do que nunca, talvez pelo fato de saber o que poderá se tornar. Com isso, acaba destruindo sua nova criação diante dos olhos do Monstro.
Por consequência, o Monstro torna-se completamente vingativo e mata o jovem Clerval, o melhor amigo de Victor Frankenstein. E depois que Victor se casa com a bela Elizabeth, o Monstro mata sua esposa também.
É interessante notar que, nesse ponto da história, Victor se iguala na monstruosidade, tornando-se vingativo também. Dado momento, o leitor não sabe mais quem está certo, ou quem é o verdadeiro monstro.
O final impactante

Mary Shelley foi simplesmente genial ao colocar questões éticas dos homens da ciência, trazendo uma história sobre uma série de trágicas consequências quando ultrapassamos os limites dos avanços científicos.
A conturbada relação entre criador e criação é como se uma espécie de personificação do pensamento do filósofo Thomas Hobbes, ao dizer que: “O homem é o lobo do homem”.
Victor, ao colocar a ética e a moral de lado, coloca em risco a própria espécie em nome do entusiasmo pela ciência. Tudo pela grande emoção de ser revolucionário e pela obsessão de criar algo que o pertença, ignorando as consequências.
Ele sai em busca da Criatura para se vingar de todas as mortes e sofrimentos que causou, mas isso debilita sua saúde. E é nesse momento que Victor é encontrado em uma geleira na Rússia pelo capitão Walton e sua tripulação, e lhe relata todos os acontecimentos de sua vida.
Por fim, em uma carta à Margaret, sua irmã, o capitão Walton conta que, ao retornar, encontrou Victor morto. O grande monstro estava diante de seu corpo e exclamava dor e horror ao ver que seu criador havia morrido. A Criatura então avança em direção à janela e desaparece.
Interpretações e conclusão
Assim termina a obra, deixando-nos com uma questão em mente: o homem é mau por natureza, a menos que precise ser bom, ou o homem é essencialmente bom e o meio em que está inserido e de onde foi construído moldam o seu caráter?
A Criatura de Frankenstein é o exemplo de um ser inocente e com extraordinária sensibilidade que foi se moldando pelas coisas horríveis que humanos são capazes de fazer por puro preconceito.
Sua aparência para todos se torna algo mais relevante que a inteligência de suas palavras, e isso é cruel, já que a simpatia e o conhecimento são — ou ao menos deveriam ser — genuinamente mais atrativos que a beleza. É uma das principais questões que o livro levanta, e que facilmente levantariam debates, pelo fato de serem atuais mesmo após mais de 200 anos de publicação.
Se olharmos pelo contexto histórico do livro (que, na verdade, é como se deve olhar para todo clássico), a Criatura faz alusão à mulher abandonada pelo sistema do patriarcado (que, em partes, poderia ser representada pelo próprio Victor). O livro em si mostra as experiências de Mary como mulher no século XIX.
Sendo filha de uma filósofa e escritora feminista, Mary Shelley levou para a obra uma crítica forte sobre questões feministas, focando na invisibilidade das mulheres na sociedade patriarcal da época, da mesma forma que a Criatura era invisível e ignorada pelos outros, e sofrendo por não a levarem em consideração. Mary se sentiu claramente abandonada diversas vezes, e isso foi um motivo de revolta, resultando em um dos maiores clássicos da história da literatura.