O western americano é uma fantasia atemporal cuja gama histórica ajudou a solidificá-lo como um estilo lendário na arte em geral, principalmente no cinema. Graças a Hollywood, todos conhecem os assaltos a bancos, cruzadas solitárias pelo deserto, e duelos de foras-da-lei. Em contraste, a presença do western na literatura é inegável, principalmente por ser uma das formas mais comuns de disseminar relatos daquela época. Ex-criminosos, xerifes ou delegados envelheciam e escreviam suas histórias do velho oeste em livros, vendendo centenas de cópias. Todavia, em Meridiano de Sangue, fato e ficção se cruzam no que é provavelmente o melhor romance americano já escrito.
A fim de escancarar e pontilhar os aspectos mais depravados da mente humana, Cormac McCarthy explora uma das épocas que mais possibilitou tais elementos a se encarnarem. No velho oeste, a matança, o roubo, o ódio e a fúria caminhavam lado a lado.
Garotos e assassinos
Meridiano de Sangue facilmente se inclui na categoria da anti-westerns, ou seja, uma história que critica aspectos pré-estabelecidos do gênero. Nosso protagonista é um garoto sem nome que foge do pai alcoólatra. Cruzando o país em pleno século 1800, o Kid acaba por ser recrutado para uma milícia que atravessa a fronteira do México para tentar controlar a guerra civil que assola o país. Entretanto, seu destino ambulante o coloca nas mãos de Joel Glanton, um mercenário sádico contratado por governadores estadunidenses para coletar escalpos de indígenas e mestiços.
Dentro da gangue de Glanton, o Kid conhece figuras enigmáticas. Entre elas está o Juiz Holden. O antagonista central do livro, embora as ações do bando de Glanton coloque todos eles, e até o Kid, como os vilões. O Juiz é um homem enorme, pálido, careca, muito sábio em diversas áreas. Ele acredita em uma filosofia niilista em que o mundo é tão cruel quanto o coração daqueles que nele habitam.
Assim, o bando vai do México para Califórnia dizimando vilarejos inteiros de indígenas e peregrinos. Eles coletam seus escalpos que servem como moeda de troca com os governadores de cidades locais. No entanto, a cruzada maligna de Glanton coloca ele e seus homens cara-a-cara com a própria sanidade.
O romance evita estabelecer heróis e vilões, tanto que, na metade do livro, Kid deixa de ser importante e passa a ser um mero coadjuvante que toma parte nos atos cruéis do bando. O mundo de Meridiano de Sangue é sujo e perverso; as crenças se chocam com promessas quebradas.
Ambientes cósmicos em Meridiano de Sangue
Um dos pontos fortes do livro está em sua descrição não precisa, mas contemplativa e lírica do cenário. Os desertos em que os personagens cruzam são como pequenos universos que se escondem nas fronteiras do mundo. Nesses momentos, a narrativa cai em um plano quase abstrato, devaneador e intrusivo. Além disso, McCarthy se utiliza de uma técnica textual que recorre a sentenças longas, com poucas vírgulas, separadas apenas por pontos finais.
Isso acaba só dando mais ênfase para as pequenas viagens transcendentais que os ambientes da história proporcionam. Obviamente, a atenção total do leitor é requerida com frequência, com muitos podendo facilmente se perder nas longas sentenças de McCarthy. A leitura acaba por ser uma batalha mesmo para os mais dispostos. Porém, no fim das contas, o resultado é muito recompensador.
Cormac não descansa quanto a suas críticas e visões do velho oeste, que perduram por toda a trama. Desde governadores corruptos na fronteira com o México, até a terrível ironia do ciclo de violência que o bando de Glanton perpétua naquela terra — que supostamente enlouquecia as pessoas. Nessas horas, o Juiz Holden é usado com maestria em longos sermões sobre guerra, religião, e morte; facilmente tornando-o um dos mais interessantes personagens da literatura.
Claro que nem tudo é perfeito. A grande maioria do elenco restante no livro não se sobressai tanto quanto Holden ou Glanton. Alguns personagens acabam por sair rasos e fracos, muito por conta da técnica de McCarthy, que acaba dando mais foco nas situações do que para o desenvolvimento singular dos indivíduos. Talvez por isso muitos argumentem que seja um preço a se pagar pelas detalhadas exposições dos cenários, que se mesclam a metáforas complexas. Porém, é inegável que os personagens sejam mais mecanismos da história do que pessoas em si.
Veredito
Meridiano de Sangue transforma sua linear sequência de massacres em uma agonizante, mas interessante experiência que gruda na mente do leitor por muitos anos. É uma leitura complexa, pesada, difícil de ler e difícil de assimilar. McCarthy provoca um sentimento de perdição e encontro, de redenção através da violência, e de desfecho através da solidão. Com certeza não é para todo mundo, mas aqueles que dão uma oportunidade a este clássico da literatura norte-americana, estão certamente prontos para uma única e singular jornada.