Há 14 anos, nos primórdios do que é atualmente o gigante YouTube, um jovem de 16 anos postava o seu primeiro vídeo, uma engraçada música sobre os familiares que questionavam sua sexualidade. Atualmente, após completar três décadas de vida, o adolescente engraçado floresceu em um comediante completo e se tornou um dos nomes mais relevantes do Stand Up.
A quantidade de trabalho produzido pelo artista em tão curto tempo não é nada menos do que a demonstração de sua genialidade. Explorando desde o início o viés musical e performático da comédia, Bo Burnham é singular. Ainda que o panorama cômico musical possua grandes nomes (mesmo que em pouca quantidade), desde Monty Phyton, Mamonas Assassinas, Tenacious D, The Lonely Island, Pedra Letícia e Tyler Cassidy, Bo possui graus de criticidade, sátira e conhecimento musical incomparáveis.
Em Inside, seu último especial após um hiato de 5 anos, Bo Burnham entrega uma produção pandêmica definitiva, um Stand Up musical que ele produziu inteiramente em casa acerca do isolamento e tudo aquilo que decorre dele, desde fazer uma chamada de vídeo com familiares até a mais profunda depressão e ausência de sentido. É o Zeitgeist dos anos de coronavírus, uma resposta artística para a época de caos em que vivemos, traduzindo incontáveis influências simultâneas do presente em comédia.
Entretanto, existe aqui um evidente dilema: qual é o espaço do riso em tempos de pandemia? Ou ainda, como é possível um artista produzir algo feliz em meio a tristeza inerente à pandemia? É comum para os comediantes transformar a dor em riso ou até mesmo dissociar a comédia do sofrimento. São artistas que muitas vezes internalizam as agonias e transformam a aflição que sentem em arte.
Jim Carrey, por exemplo, já explicou que desde o início da carreira ele buscava passar uma imagem de alguém despreocupado, para transmitir esse sentimento de leveza e alegria ao público. Era um humor que pretendia fazer os espectadores esquecerem dos problemas que passavam em casa e na vida em geral. No entanto, Carrey acabou por criar um personagem de si mesmo, alguém que não o representava de fato: uma figura sempre alegre e impossibilitada de demonstrar fragilidade. Em consequência, por constantemente interpretar um papel irreal de si próprio, o ator desenvolveu uma depressão.
Outro exemplo mais recente é o comediante e roteirista John Mulaney, alguém que transparecia um pouco das inseguranças e dos problemas que possuía em seus especiais de Stand Up, mas que mesmo relativamente consciente das próprias angústias, sempre demonstrava uma leveza em palco e desenvolvia seu texto com um bom humor inigualável. Porém, em dezembro do ano passado, Mulaney surpreendeu muitos ao se internar devido a vícios em álcool e cocaína. Ao sair da reabilitação, o comediante ainda terminou o casamento com a esposa que parecia tanto amar.
Com Inside, Bo Burnham provoca uma ruptura nessa comédia não consciente ou semiconsciente de seus problemas. Aqui não existe mais a internalização das ansiedades e depressões do comediante, mas a expressão dessas dores em forma de músicas que oscilam entre risos e lágrimas. Não é um especial para esquecer dos problemas da vida e relaxar, mas sim relembrar todos eles e ainda refletir sobre outros que Burnham nos introduz.
Não é à toa que o título da obra se traduz simplesmente para a palavra ‘dentro’, pois, enquanto nos encontramos dentro da casa onde o artista grava o especial e também dentro de nossas próprias casas enquanto assistimos, também adentramos a mente do comediante, no interior de seus pensamentos, reflexões e angústias. É uma visita extremamente íntima a alguém que nunca conhecemos pessoalmente.
O humor do especial é constantemente consciente e auto-reflexivo. O espectador presencia tanto o produto, ao assistir às piadas e aos números musicais prontos, quanto o processo, ao ver Burnham montar o cenário, preparar a iluminação, editar o vídeo, questionar o tempo que demora para finalizar o filme e até mesmo criticar a si próprio como comediante. É uma obra repleta de metalinguagem, que se reconhece como produto de entretenimento ou ‘conteúdo’, sem abdicar dos fortes sentimentos do ‘protagonista’ Bo Burnham.
Ao não separar o fardo que é a vida na pandemia da comédia, assim como colocar o espectador diante do desenvolvimento de sua depressão devido ao isolamento, Burnham rompe com a ideia de ocultar as dores para fornecer alegria ao público. Desse modo, o comediante concebe um entretenimento consciente e demonstrativo da própria miséria em que se encontra, mas que mesmo assim pode alegrar e fazer rir aos montes.
Através de canções espetaculares com panoramas e reflexões que só poderiam surgir na mente de um gênio da comédia, Bo Burnham reafirma o espaço e a necessidade do riso mesmo nos cenários mais desesperadores, um riso que não busca esquecer a realidade deplorável em que nos encontramos, mas que é capaz de analisá-la em todo seu absurdo através de uma ótica cômica.