Agora que Era uma Vez em… Hollywood finalmente chegou ao catálogo da Netflix, muitas pessoas que ainda não tinham visto, estão tendo a oportunidade de apreciar essa obra-prima. Porém, esse é um filme de Quentin Tarantino em que ele pressupõe que você já saiba o contexto básico da história, afinal ela é baseada em fatos reais.
O que, de certa forma, pode ser considerado um problema, pois se você não souber do que se trata, a experiência tende a ser muito aleatória e sem sentido. Quem são essas pessoas? Por quais motivos estamos vendo a vida delas? Qual é o significado daquele final? O que aconteceu na vida real?
Acima de tudo, devemos dizer que a melhor parte é quando descobrimos a verdade entorno do filme e porque suas alterações históricas são tão geniais. Um cineasta como Tarantino, que volte e meia muda o final da vida real, não poderia perder essa chance aqui. Então, hoje vamos destrinchar a tragédia que inspirou Era uma Vez em… Hollywood e como ela está aplicada no longa.
Quem foi Sharon Tate?
Para entender essa história, a figura de Sharon Tate é primordial. Sharon foi uma atriz muito famosa na década de 60, que começou a carreira com comerciais para TV e como figurante em filmes.
A carreira cinematográfica dela começou de fato, com um pequeno papel no thriller O Olho do Diabo (1966). Já em 1967, enquanto trabalhava em A Dança dos Vampiros, ela conheceu e se relacionou com o diretor Roman Polanski (O Bebê de Rosemary).
O papel central dela em Não Faça Onda (1967) levou à sua descoberta no mesmo ano como seu grande papel em O Vale das Bonecas. Ela também apareceu, em uma de suas últimas atuações, na paródia de espionagem Arma Secreta contra Matt Helm (1968), estrelado por Dean Martin. Além de sua inegável beleza, seu carisma e elegância em cena conquistavam qualquer um que a assistia.
Sharon ficou grávida no fim de 1968, e em fevereiro de 1969, ela e Roman se mudaram para uma mansão em Bel Air, a Cielo Drive 10050.
Quem foi Charles Manson?
Charles Manson é a principal figura que desencadeia o desfecho dessa história. A mãe de Manson era uma jovem de 16 anos que era alcoólatra e prostituta, que o colocou em uma escola para meninos aos 12 anos. Rejeitado em suas tentativas de voltar para ela, logo ele estava morando nas ruas e sobrevivendo de pequenos crimes.
Assim, nos anos posteriores, Manson entrou e saiu de reformatórios e prisões por vários crimes. Mas ele saiu mesmo da prisão em 1967, se mudando San Francisco. Ele foi influenciado não só por drogas, como o LSD, mas por obras de arte e músicas da época, especialmente Helter Skelter, do Álbum Branco dos Beatles. Sua fascinação por música era grande, tanto que sonhava em ser um músico de sucesso.
Ele acabou se aproximando do baterista dos Beach Boys, Dennis Wilson, que ganhou seu fascínio e tinha permitido que Manson morasse em sua casa. Foi através dessa conexão que Manson teve a oportunidade de fazer um teste para Terry Melcher, um produtor musical da banda nos anos 60. Contudo, Melcher não estava nem um pouco interessado em assinar um contrato com Manson, ainda mais sabendo de suas atitudes questionáveis.
Nesse sentido, Manson tinha uma forte crença no Armagedom, descrito no Livro das Revelações (Apocalipse). Suas obsessões e traços de personalidade faziam ele acreditar fortemente que era o prenúncio da desgraça em relação ao futuro do planeta. Vale ressaltar que ele também era muito racista.
Os hippies da Família Manson
Após a saída de Manson da prisão, ele atraiu um pequeno, porém, dedicado grupo de seguidores. Com seu poder de persuasão, ele se tornou líder do que seria chamado “Família Manson”, uma seita religiosa dedicada a estudar e implementar ensinamentos religiosos excêntricos. Dessa forma, ele pregou a chegada de uma guerra racial apocalíptica que devastaria os EUA e deixaria a Família Manson em uma posição de poder dominante.
Essa família contava principalmente com mulheres jovens, no final da adolescência e perto dos 20 anos. Mulheres brancas de classe média em todo o país estavam indo para cidades como São Francisco e Los Angeles, inspiradas por outros hippies a “ligar, sintonizar e desistir”. Manson usou suas seguidoras para atrair outros homens para se juntar ao grupo e apoiá-lo; inclusive, foram várias dessas mulheres que inicialmente conheceram Dennis Wilson e, consequentemente, trouxeram Manson para sua casa.
Então, Manson e a sua Família se espalharam por Los Angeles, eventualmente se estabelecendo no Rancho Spahn, um antigo cenário de cinema e televisão. Lá, ele exerceu total domínio sobre o grupo, onde instruía as pessoas a usar LSD e ouvi-lo pregar sobre o passado, presente e futuro da humanidade. Eles viviam em condições realmente nojentas.
9 de agosto de 1969
Em 9 de agosto de 1969, Sharon Tate logo despertou em Cielo Drive. Na hora do almoço, se reuniu com duas amigas e se mostrou frustrada com Roman Polanski, que além de não estar presente, havia adiado em alguns dias seu retorno de Londres, onde pré-produzia e dirigia O Dia do Golfinho (1973).
De noite, a atriz saiu com alguns amigos para jantar no restaurante El Coyote. Esses amigos incluíam: seu ex-namorado Jay Sebring, a socialite Abigail Folger e seu namorado, o polonês Wojciech Frykowski.
Depois de voltarem para a mansão, Tex Watson, Susan Atkins, Linda Kasabian e Patricia Krenwinkelos invadiram a residência e realizaram uma verdadeira chacina no local. Esses eram membros da Família Manson, que primeiramente executaram o amigo do caseiro, Steven Parent, que logo foi baleado quando saiu de casa e deu de frente com o grupo.
Sharon, Jay, Abagail e Wojciech foram espancados, assassinados a tiros e à facadas na sala da residência e nos jardins do local. A atriz teve 16 facadas desferidas contra sua barriga, ela estava quase ganhando seu bebê e implorou por sua vida.
Nas paredes da casa, o grupo escreveu com sangue das vítimas “Pig” (“porco”, um apelido usado pelos negros para se referirem à polícia). Além disso, nesse dia, Tex disse a seguinte frase ”eu sou o diabo e vim aqui a serviço do demônio”.
Por que isso aconteceu?
Manson convenceu quatro membros de sua família a assassinarem inocentes que, até então, não tinham ligação alguma com ele. Mas por quê? Pois bem, já devemos dizer que não existe nada que justifique essa tragédia. ”Charlie”, como eles chamavam, era extremamente manipulador, assim, todos ficavam fascinados com a ideia de serem os ”escolhidos” por aquele que se dizia a reencarnação de Jesus Cristo.
No dia seguinte, o casal Leno e Rosemary LaBianca também foram mortos, os dois receberam mais de 40 facadas. Nessa situação, Manson estava presente e amarrou o casal, deixando para que seus seguidores (dessa vez, com mais dois) os matassem. Dessa forma, nas paredes, estava escrito “Helter Skelter”; um plano que Manson tinha de fazer as autoridades acreditarem que os assassinatos tinham sido cometidos por membros da comunidade afro-americana, para provocar uma guerra racial entre negros e brancos. Confronto esse que ele achava ter visto como profecia na música dos Beatles.
O procurador encarregado de culpar Manson, Vincent Bugliosi, publicou depois do julgamento o livro Manson, Retrato de um Crime Repugnante, onde ele estabelece a seguinte hipótese: a Cielo Drive número 10050 era a antiga residência do produtor musical Terry Melcher, que recusou produzir Manson no passado. O motivo que ele deu aos Hippies para cometer os assassinatos seria uma desculpa para sua frustração por Terry ter o rejeitado? E se o assassinato do casal LaBianca teria sido para reforçar o falso motivo que ele deu aos hippies?
Nesse sentido, Manson já havia ido para a mansão algumas vezes, procurando Terry. Ele já sabia que o produtor não morava mais lá, sendo até expulso do local por tanta insistência. Em algum momento, ele provavelmente viu Sharon na varanda, ela também deve ter visto ele.
O que aconteceu depois dos crimes?
Uma das participantes dos crimes, Susan Atkins, havia sido presa por um roubo de carro. Assim, enquanto estava na prisão, confessou sua participação a duas colegas de cela, se vangloriando por isso. As duas detentas avisaram a direção do presídio, que consequentemente avisou a polícia. Dessa forma, os crimes que geravam tantas teorias, incluindo bruxaria, tinham uma resposta e deixaram as investigações mais claras.
Manson também foi denunciado por alguns de seus seguidores, logo sendo capturado pelas autoridades. Após um longo processo, ele e seus seguidores foram condenados à morte. Contudo, no ano seguinte, a pena de morte foi abolida da Califórnia, assim, todos eles foram condenados apenas à prisão perpétua.
Tanto Atkins quanto Manson acabaram morrendo dentro da prisão por causas naturais, já os demais seguidores estão presos até hoje; e mesmo que ainda recorram à liberdade condicional, ela é sempre fortemente negada.
Então, as duas tragédias entrelaçadas ficaram conhecidas como Caso Tate-LaBianca.
Como a história se encaixa no filme?
O filme se situa ao fim da década de 1960. Hollywood começa a afetar o astro de TV Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt), que tentam acompanhar as mudanças. Dessa forma, em paralelo a isso, acompanhamos o dia a dia Sharon Tate (Margot Robbie).
Tarantino não abusa da história que tem em mãos, ao contrário de outros idealizadores que adaptam o caso para o cinema. Sua Tate possui um tratamento respeitoso, que apesar da presença pontual, é doce, meiga, feliz e vive seu dia a dia como qualquer outra pessoa. Ela é muito além de uma vítima, trazendo uma genuína inocência em seu olhar. Aliás, uma das melhores decisões do diretor foi colocar apenas uma cena para Charles Manson.
Essa Hollywood de conto de fadas de Tarantino apresenta uma divergência desde o início: Rick Dalton, que não existiu na vida real, é vizinho de Sharon. Existe a abordagem da família Manson desde o início, e a construção do fatídico dia. Por isso, os últimos minutos do longa são tão poderosos, pois o diretor subverte um fator crucial em uma das cenas mais arrebatadoras de sua carreira. É sobre como a construção desses novos personagens favorecerá eles e o público em determinada situação.
Agora que você já sabe o contexto histórico do filme, a última cena dele, com tamanha doçura e melancolia por uma realidade que não presenciamos, ficará com você para sempre. Era uma Vez em… Hollywood é uma grande obra-prima, que aborda com muita sutileza o amor do Tarantino pelo cinema que cresceu assistindo e suas principais referências; mas seu grande triunfo é como passa por cima da infeliz história real.