Autores vem e vão como ondas em um mar espumante. Porém, ocasionalmente, alguns vem e causam uma tempestade na areia. Entre eles, J. D. Salinger se destaca por ter marcado não só uma, como todas as gerações que sucederam o lançamento do seu clássico; O apanhador no campo de centeio.
Um romance de muitas facetas. De um lado, o livro definitivo da mente adolescente. Do outro, uma história que infernizou a vida de seu autor e que passou a ser vista como uma espécie de biografia ficcional do mesmo. Depois de todos esses anos, como a crônica de Holden Caulfield ainda reflete no século XXI?
O livro dos jovens de todas as gerações
Acima de tudo, este livro é um clássico amado através das décadas. Um best-seller vencedor de muitos prêmios, considerado impossível de se adaptar, e marcado pela sua forma única e fascinante de contar a história que carrega.
A narrativa se apresenta como uma espécie de diário do jovem Holden Caulfield. Através das páginas, Holden conta como foi parar nas ruas de Nova Iorque após ser expulso de seu internato particular.
Em plenos anos cinquenta, Holden, um garoto arrogante e irresponsável, vaga pela cidade durante o natal em busca de válvulas de escape. Entretanto, tudo que ele encontra são mais e mais portas que o levam a se confrontar consigo mesmo.
Contudo, o que diferencia Holden de outros protagonistas é que ele não é um herói. Muito pelo contrário, Caulfield é alguém que você odiaria conhecer na vida real. Ele é mesquinho, mimado, bobo, cínico e sarcástico. Embora inicialmente ele pareça ser desagradável apenas por ser, ao longo da obra, o seu relato nos ajuda a entender os eventos traumáticos que assombram sua vida.
A mente de Caulfield
O apanhador no campo de centeio usa uma técnica de primeira-pessoa para contar sua história. Ou seja, tudo que lemos é do ponto de vista de Holden, e é um ponto de vista bem mais mental e desajeitado do que cirúrgico. Dessa forma, a ideia de acreditar que o garoto realmente existe e que estamos lendo esses eventos se torna bem mais creditável.
Assim como tal técnica também cria uma fascinante curiosidade do leitor pelo seu “herói”. Holden constantemente divaga sobre os seus conhecidos, seus pais, amigos e antigos professores.
Muito do que ele diz pode muito bem ser fruto de sua própria visão distorcida e imatura do mundo. Caulfield é um narrador não-confiável, mas saber entender quando ele está ou não está contando a verdade é o que torna a obra tão especial.
Entretanto, por vezes, a história é bastante introspectiva e até deprimente. Não demora muito para notarmos que Holden Caulfield sofre de uma profunda depressão causada por eventos traumáticos do passado, além de ansiedade, pânico e outras disfuncionalidades. Sua rebeldia contra o mundo e contra si mesmo nos torna apegados ao garoto.
Salinger
Não se pode falar de O apanhador no campo de centeio sem falar de seu autor. J. D. Salinger é uma figura emblemática da literatura. Salinger conseguia transportar muito do que ele via no mundo para as páginas, por exemplo, ele serviu na Europa durante A Segunda Guerra Mundial, e escrever um conto sobre um garoto andando pelas ruas de casa o fez suportar aquele inferno por muito tempo.
Sim, foi na guerra que Salinger escreveu os rascunhos do livro.
E quando voltou para casa, descobriu que sua namorada havia o trocado por outro homem, um muito famoso, na verdade. De coração partido e rejeitado pelas figuronas de Hollywood, Salinger concluiu o seu conto, colocando muito daquele fervor solitário na mente de seu personagem principal.
Em síntese, esses eventos ajudaram o autor a escrever um relato muito sincero e pessoal. Por exemplo, ele usa muitas gílias da época, de forma que muitas delas se perderam nas traduções seguintes. Ainda assim, Holden Caulfield fala e escreve como um adolescente dos anos cinquenta.
O que mais intriga é que após o sucesso monstruoso de seu romance, Salinger se isolou do mundo, e jamais vendeu os direitos de seu livro para Hollywood transformá-lo em um filme. Ele acreditava que sua história jamais devia ser desvirtuada pelas mãos das pessoas que um dia o rejeitaram.
Veredito
O apanhador no campo de centeio está entre aquela tênue linha entre uma experiência de vida e uma leitura. As circunstâncias nas quais ele foi escrito jamais podem ser repetidas, seja a visão de Salinger, seja a guerra, seja o que for; temos aqui a soma de tudo isso. Ler esta obra-prima pela primeira vez é como um daqueles momentos de fascinação em nossas vidas, andar de bicicleta, ou provar um certo prato pela primeira vez. Todas essas experiências iluminadas que fazem de nós o que somos.
E ainda que Holden Caulfield seja um mero reflexo ficcional de sua época, de seu autor, sua história continua cativando leitores setenta anos após sua publicação inicial. Afinal, todos nós temos um pouco de Holden Caulfield dentro de nós, e ele sempre estará lá. Continuamos andando ao lado de Holden nas ruas nevadas de Manhattan.