Em março de 2020, as editoras Elefante e Dublinense se juntaram com o propósito de produzir uma coletânea de histórias que tivessem a pandemia como cenário. A chamada pública reuniu dezenove contos que demonstraram toda a pluralidade de sentimentos que surgiu nesse período tão difícil, formando os Retratos da vida em quarentena.
Pergunte a dez brasileiros sobre suas emoções na quarentena, e tenha certeza de que irá ouvir ou tédio, dor, tristeza ou solidão entre as respostas. Aqui, mergulhamos nesse mar de sentimentos, e vivemos por meio dos contos curtos o impacto das pequenas ações no silêncio.
O primeiro conto, Marluce, é um soco no estômago. É de primeira que encaramos a realidade bruta dos trabalhadores que não podiam ficar em casa, e sentimos o peso da hipocrisia. Assim, é duro encarar de maneira tão clara no papel as pessoas que juraram que se importavam com os outros, mas que apenas estavam se aproveitando da vulnerabilidade da situação.
Em seguida, temos o Manual do obituarista, observando o olhar frio que diversos profissionais tomaram para conseguir continuar a ir ao trabalho. E, em Tecnicamente, assistimos o desgaste que a rotina trouxe àqueles que atuavam na educação. É a solidão contida nas caixinhas de texto virtuais, dos alunos que também não suportam encarar uma câmera. É o professor que se sente só ao falar consigo mesmo.
Pergunto para meus nomes, números e fotos: queridos, o que vocês enxergam aí?
Vitor Fernandes, Tecnicamente
Logo depois, em Por que Brenda escreve, vemos os sonhos que ainda existem na pandemia, seja pela necessidade ou não. A promessa de dona Tatá traz a tristeza na despedida dos entes queridos, e como buscamos honrar com suas mortes, seguindo em frente. Mas é em Solo, que encaramos também os desafios da convivência em conjunto, mesmo sendo com as pessoas amadas.
Posteriormente, o conto Maldita Cinthia demonstra os efeitos da paranoia que resultaram na maldade crescente que vimos nos noticiários. Por outro lado, Alfaces estragados entrega com diversão os delírios do isolamento. Seja como for, podemos sempre encontrar o alívio da amizade em meio à confusão, como é mostrado em Olhar na tua cara e descobrir que horas podemos conversar.
Em Covid-1997, navegamos entre os tempos antigos e atuais, vendo as diferenças que a pandemia teria se tivesse ocorrido anos atrás. A dualidade também é um dos temas de O problema e Ele, que exploram o desejo de voltar ao antes por conta das situações complicadas em casa.
O problema é não ver. Há setenta e cinco dias isolada em casa, não vejo a rua. Não vejo as lojas, nem as crianças arrastando mochilas, nem os cães alegres em suas coleiras.
Laiz Colosovski, O problema
Sem dúvidas, Quarenta quarentenas merece menção honrosa por retratar as diversas situações da pandemia, usando do dinamismo em sua estrutura, o que traz justiça a sua entrada nesta coletânea.
Essa antologia tem mais contos dentro de si, e mesmo que suas abordagens difiram, todos abraçam o propósito de apresentar ao público as dimensões que a pandemia trouxe para todos. Nesta obra, são abordadas as inúmeras realidades de várias pessoas, revisitando questões como sexo, gênero, posição social, e como elas influenciam no dia a dia.
Quanto à parte visual, Retratos da vida em quarentena contém ilustrações roxas que fazem o papel de divisão entre os contos, além de uma tipografia agradável em um tom mais escuro da cor.
Aliás, você terá seus contos preferidos enquanto lê. Podem ser as histórias tristes que farão você se enrolar no cobertor e fechar os olhos ao lembrar que isso aconteceu de verdade em algum lugar. Quem sabe não será uma das histórias fantasiosas que deixam você mais apreensivo, esquecendo da realidade escondida ali.
Seja qual for, este é um livro que não decepciona em nenhum momento, pois logo você está na vida de outro alguém. Ótimo para os que costumam mastigar a leitura, você com certeza precisará de uma pausa e um lencinho antes de seguir para a próxima.
Por meio dessas palavras, nós vivemos a dor de sentir na pele o que foi ser um parente, um cidadão, um ser humano em meio a uma catástrofe mundial. Os surtos, as risadas enlouquecidas, as compras descabidas, os pedidos de socorro virtuais… Retratos da vida em quarentena mostra todas as facetas do ser humano quando colocado contra a parede, enjaulado por uma solidariedade que nos faz ser humanos.
Como poderíamos ousar nos chamar humanos se não podemos renunciar a nossas diversões, amores e abraços para salvar quem está ao nosso lado? Retratos da vida em quarentena se prova uma obra completa, emocionante e cheia de versatilidade, cumprindo bem mais do que promete.