Como é difícil esquecer alguém do passado! Ainda mais se for alguém que você cresceu ou compartilhou alguns momentos da infância.
Hajime está sofrendo desse mal. Não importa quanto tempo passe, ou o que ele esteja fazendo, sua mente sempre retorna para a garotinha de sua infância com quem sentava para ouvir discos de música, Shikamoto.
Estamos no Japão, e Hajime é o nosso protagonista. Sob seus olhos, acompanhamos sua vida: infância, adolescência e vida adulta. A narração é tão concisa e imersiva que parece que estamos lá, vendo tudo acontecer de primeira mão. Os detalhes que foram inseridos — nomes de músicas, locais —, são colocados de um jeito que você até duvida se aquilo não é o autor viveu. Tudo parece muito crível, real, e as descrições parecem mais com memórias, nunca longas ou complicadas demais.
Além da música clássica, havia na coleção da casa de Shimamoto um disco de Nat King Cole e um de Bing Crosby. Ouvimos esses dois discos inúmeras vezes. O de Crosby era uma coletânea de músicas natalinas, mas nós a escutávamos em qualquer estação. Hoje, acho incrível a gente não ter enjoado deles.”
Desde os primeiros parágrafos, você sente que essa é uma história que vai te contar algo incrível. O livro possui uma alma, uma aura de mistério e sensibilidade que o envolve. Não é como se Hajime fosse um protagonista sensível que derrama poesia pelos lábios o tempo todo, muito pelo contrário, às vezes ele aparenta ser muito desligado e agir no automático. Mesmo assim, ele possui seus momentos de sensibilidade.
— Quando olho pra você, às vezes me sinto olhando para uma estrela distante — falei. — É uma luz muito nítida, mas foi emitida há dezenas de milhares de anos. Pode ser o brilho de um corpo celeste que já nem existe mais. E mesmo assim às vezes é mais real do que qualquer outra coisa.”
Todos os personagens do livro são interessantes. São reais, possuem seus defeitos, são imperfeitos e isso traz um encantamento. Hajime está longe de ser o mocinho, de ter a personalidade ideal. Na verdade, em muitos momentos o leitor vai sentir vontade de fechar a capa do livro e respirar fundo. Ele comete erros mesmo sabendo das consequências, os reconhece, mas continua a cometê-los ou refazê-los. Chega a ser frustrante.
Naquele momento eu não sabia. Não sabia que eu era capaz de, um dia, magoar alguém de maneira irreparável. Que, apenas por existir, as pessoas podem magoar profundamente umas às outras.”
Poderíamos fazer uma problematização acerca do romance que é apresentado aqui… Shimamoto consegue encantar Hajime mesmo sem estar por perto, consegue ser o centro de seus pensamentos, ainda que ele não esteja em posição para fazer isso. É notável que os dois compartilham uma conexão indescritível e um pouco distorcida. Será que o amor deles nasceu na época certa? Será que era amor de verdade?
E acho que mantive, por muito tempo, um pedaço do meu coração vazio, destinado especialmente para ela. Como uma mesa tranquila, no fundo de um restaurante, com uma discreta placa de “reservado”.”
A impressão que fica subentendida no livro é que Hajime se sente muito só. É muito comentado o fato de ele ser filho único, de ter poucas amizades, de passar muito tempo lendo sozinho. Pode-se supor que essa falta de companheirismo o leva a agir sem empatia muitas vezes, se priorizando e magoando outras pessoas. Em um trecho em que ele fala sobre o próprio negócio, podemos traçar uma alusão a como ele se sente, o que ele quer e a razão de procurar Shimamoto: ele não quer estar só, não quer a vida tediosa. Shimamoto é a emoção, o magnestismo silencioso, a décima tentativa.
Não é a busca por experiências medianas que faz as pessoas se entregarem. É a busca por uma experiência sublime. Mesmo que nove de cada dez tentativas não deem em nada, as pessoas continuam indo atrás da décima. E é isso que move o mundo. Me pergunto se a arte não é justamente isso.”
Hajime comete muitas ações moralmente erradas. No entanto, se é complicado encontrar beleza em suas ações, é muito mais fácil reconhecer a beleza na iniciativa do autor em construir criaturas que saem da curva, que são humanos. Os personagens secundários, apesar de ocuparem pouco espaço no texto, também conseguem mostrar seus defeitos e qualidades com eficácia.
Quanto à escrita, a leitura é fácil, com palavras do cotidiano. Também há uma emoção submersa, escondida, quase que adormecida, como uma rede de pesca abaixo de alguns centímetros na água, esperando para pegar algo que não consegue ser visto.
Por que você acha que, noite após noite, tanta gente vem até aqui e paga um bom dinheiro para beber? É porque todo mundo busca, em maior ou menor grau, um lugar imaginário. Todos querem ver os jardins suspensos, cuidadosamente desenhados por mãos humanas, querem fazer parte desse cenário. É por isso que eles vêm.”
Que título longo o desse livro! Complicado de memorizar! Mas se torna mais fácil quando descobrimos o que quer dizer. O sul da fronteira é o paraíso que todo mundo quer alcançar, o oeste do sol é a maldição que te faz correr atrás de algo que vai te prejudicar. Isso se aplica muito ao próprio protagonista, e sua relação com Shimamoto também.
Onde não há nada intermediário, não pode haver meio-termo. Ao sul da fronteira, pode ser que o talvez exista . Mas, a oeste do sol, não há talvez.”
Precisamos dar parabéns ao escritor Haruki Murakami por ter conseguido transformar um roteiro simples em algo complexo, cheio de metáforas. Parabéns por deixar algumas perguntas não respondidas, por não ter seguido o caminho fácil. A maioria dos leitores ficarão chateados com o final do romance, mas é compreensível a escolha seguida. Nem tudo é o que a gente quer, né?
Sul da fronteira, oeste do sol é repleto de sensibilidade, mistério e realidade. É uma obra que traz uma visão diferente aos olhos cansados, que mescla o clássico com o moderno.
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E aí, que tal sair da sua zona de conforto lendo esse lançamento da Editora Alfaguara?