Em 2008, o cineasta Guillermo del Toro anunciou que seu próximo filme seria uma adaptação sombria de As Aventuras de Pinóquio. Essa história em particular sempre o encantou, e ele era apaixonado na ideia de fazer um filme à sua visão. Tendo a ideia de fazer uma animação em stop-motion, del Toro também trabalhou em artes conceituais com os visuais dos personagens.
Contudo, esse foi um projeto que ficou engavetado por muitos anos, já que nenhum estúdio estava disposto a financiá-lo, pois não seria rentável. Felizmente, em 2018, 10 anos depois da ideia original, foi anunciado que o filme havia sido revivido, agora, como uma produção da Netflix.
Pinóquio por Guillermo del Toro chegou recentemente ao catálogo da Netflix e já está sendo muito bem-recebido pelo público. Mas, o que exatamente podemos absorver de substância desta nova versão?
No filme, o grilo-falante (Ewan McGregor) narra a história de um pai solitário (David Bradley) que cria um boneco de madeira, cujo nome é Pinóquio (Gregory Mann). Após Pinóquio magicamente ganhar vida, ele fica confuso e deslumbrado por ser tão diferente de todas as outras pessoas, e quando recebe uma proposta irrecusável e finamente acha que se encontrou, tanto a sua vida quanto a de seu pai muda repentinamente.
A releitura de Pinóquio por Guillermo del Toro
A história de Pinóquio é extremamente popular. E dentro de tantas versões já realizadas, como del Toro poderia inovar a história e cativar o público? Pois bem, somente ele mesmo poderia fazer uma releitura em stop-motion tão original, emocionalmente poderosa e que nunca perde os principais aspectos da história original. A começar com o visual e a movimentação propositalmente desengonçada do personagem, que, com sua aura inocente, logo conquista quem quer esteja assistindo. A própria concepção do seu nariz crescer em vários galhos, formando uma árvore, é uma ideia bem executada visualmente.
Dessa forma, estamos lidando com um filme que passeia por diversos gêneros. Enquanto temos uma proposta de história infantil, ela é expandida à diferentes camadas. A criação deste boneco é muito mais do que uma construção convencional, pois além de sua vida estar atrelada a uma situação completamente mística; o momento em que Gepeto lhe dá forma é transmitido com um momento de terror, onde parece que ele está gerando uma espécie de monstro ou aberração. Ainda assim, temos genuínos momentos musicais e a inserção de um contexto histórico que o del Toro geralmente adiciona em suas obras.
Nesse sentido, a história ser narrada do ponto de vista do grilo é outro grande acerto. Pois esse, além de ser um ótimo recurso cômico, traz o tom de fábula que essa história naturalmente demanda. Já o visual da animação traz minimalismos, que compõem um traço marcante desses personagens e desse mundo que eles vivem, com sequências de movimento fluidas. Além disso, o uso de cores, especificamente do azul, pode representar desde um aspecto mais melancólico até algo mais etéreo e surreal.
Temáticas poderosas
Um dos fatores mais interessantes do filme é como ele trata de temáticas humanamente relacionáveis. Não é só a rejeição, mas, também, a projeção da perda e a inevitabilidade da morte. A ideia de um Gepeto que perdeu seu filho de maneira tão trágica e se afundou no álcool traz um inesperado tom adulto à trama. Quem diria que tudo se originaria por conta de um trauma suprido pelo lúdico? E o fato do Pinóquio ser puro por natureza, faz muito de seu arredor ser ainda mais soturno, visto que, novamente, se passa em um período de fascismo. As discussões de fundo da história a respeito da guerra têm consequências reais.
E este é um filme forte nas relações que cria. O amor gradativo por Pinóquio imposto a Gepeto faz nos importarmos com cada palavra dita, boa ou não. O peso do fardo, que é recorrentemente citado, leva a história a situações divergentes em que tudo se torna imprevisível, parecendo que não vai dar certo. Assim, escolhas que, até então pareciam fáceis, se dificultam. E não importa qual o nível de importância dos personagens, seja máxima ou mínima, todos passam por um aprendizado e saem dessa jornada diferentes (alguns apenas colhem o que plantam).
Portanto, Pinóquio por Guillermo del Toro já pode ser considerado uma das melhores produções originais da Netflix. Um idealizador tão apaixonado como del Toro utiliza do seu amor pelo cinema para reproduzir não somente um visual stop-motion marcante, mas também, uma história repleta de afeto, melancolia, amizade, tragédia, surrealismo e humanidade.