No dia de seu nonagésimo aniversário, um cronista decide ter uma noite de amor com uma jovem virgem. Não demora muito para encontrar uma garota de catorze anos, que passa a ser o foco de seus textos e pensamentos.
Que maravilhoso seria se ao lermos livros só encontrássemos personagens cativantes, simpáticos e amigos! Contudo, a literatura também é feita daqueles que são os feios de coração, com intenções maliciosas e obsessões doentias. Nesta obra de Gabriel García Márquez, não seria exagero dizer que seu personagem exerce sobre nós um carisma pouco merecido, muito mais dado à idade do protagonista do que à personalidade.
Sem nome, o personagem principal é escritor em um jornal, escrevendo artigos sobre música e literatura. Ele pode ser considerado um homem culto, visto que sempre está mencionando obras da cultura popular, além de possuir um vocabulário bem formal.
A comunidade intelectual, como de hábito, mostrou-se timorata e dividida, e até os grafólogos menos esperados montaram controvérsias pelas análises erráticas da minha caligrafia.
Contada na primeira pessoa, a narração do velho cronista tem um ritmo constante e quase dormente, e é por esse motivo que é difícil notar seus atos repugnantes, dado que são relatados com uma indiferença desmedida. É fácil cair na lábia do escritor, por ele também mostrar seu humor e refletir com solidão a respeito de certos momentos. E quando ele comete erros, você demora a perceber, porque é com tanta naturalidade quanto um bom dia na hora do café da manhã.
Naquela noite descobri o prazer inverossímil de contemplar, sem as angústias do desejo e os estorvos do pudor, o corpo de uma mulher adormecida.
Bem similar a uma biografia, o personagem principal relembra seu passado até aos dias atuais, sem esconder seu interesse em meninas jovens em nenhum momento. Parece que estamos vendo tudo por seus olhos, visto que nada é filtrado.
Mesmo sem a intenção, acreditamos em suas palavras, pois estamos assistindo às situações por seus olhos, por serem compartilhadas conosco. Pouco tempo se passa para que o leitor note que há algo errado, devido à tamanha romantização em suas ações. Sem filtro, também assistimos de primeira mão sua perversão.
Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir.
Sua ‘amada’ Delgadina é colocada em um pedestal. É idealizada e sexualizada, e quando não age conforme o esperado, o protagonista se descontrola. Delgadina pouco consegue se defender, já que possui nem sequer falas. Alguns podem alegar que as ações do nonagenário devem ser relevadas pela idade, mas é evidente que o cronista está consciente da idade da menina, já que suas leituras destinadas a ela são sempre de temáticas infantis.
Continuamos com os Contos de Perrault, a História sagrada, As mil e uma noites numa versão desinfetada para crianças…
Mesmo que seja perturbador, a imaturidade de Delgadina não o incomoda nem um pouco, mas provoca o efeito contrário.
Dormi bem, despertei ao lado de um urso de pelúcia que caminhava em duas patas como se fosse polar, e um cartãozinho que dizia: Para o papai feio.
O pior de tudo é saber que homens como o velho existem na vida real. Quem suspeitaria de um pobre velhinho? O protagonista existe, ele é real, anda entre nós e fechamos os olhos todas as vezes que comete suas barbaridades.
A linguagem do livro é bem tranquila, mesmo que às vezes o leitor se depare com palavras um tanto quanto complicadas, nada que um dicionário não resolva. As poucas páginas contribuem para que a leitura avance de maneira produtiva.
Alguns dizem que Memórias de minhas putas tristes é sobre solidão e arrependimento. Ousemos dizer que não. É muito mais que um erotismo imoral, solidão ou arrependimento. É um teste de caráter. Um medidor que é encarado com medo de escolher o lado errado da história. Quase como um ‘Capitu traiu ou não Bentinho?’, é sobre posicionar-se.
Podemos mudar de lado quando ouvimos uma versão diferente? Somos bons se cruzarmos os braços diante de ações ruins?
Memórias de minhas putas tristes se faz uma obra necessária em tempos em que dispensamos os detalhes perturbadores em troca de paz. Precisamos acordar, debater, lutar. É um livro assustadoramente real, mas não se pode negar que seja parte do nosso mundo.