Não é todo dia que uma longa franquia completa cinquenta anos de história. Em 2013, o fardo de um especial de 50 anos de Doctor Who — intitulado The Day of the Doctor — caiu nas mãos de Steven Moffat. Até então, ele vinha entregando uma Era interessante, refrescante e única para o Décimo Primeiro Doutor, interpretado por Matt Smith.
Contudo, o formato começava a mostrar algumas falhas, visto que a sétima temporada não havia agradado o público. Portanto, a pressão era gigantesca; e, mesmo assim, Moffat entregou um dos melhores especiais que qualquer série de TV poderia ter.
O mistério dos cinquenta anos
Steven Moffat é conhecido por sua sublime habilidade em criar mistérios muito interessantes em Doctor Who. Apesar de, em temporadas anteriores, a resolução não ser tão inteligente quanto sua proposta, ele já havia se provado como um roteirista talentoso o bastante. O bastante para criar sua linha de reviravoltas que culminem em um clímax que faça justiça ao Doutor.
Ainda assim, estamos falando de um especial de cinquenta anos para uma das maiores, se não, a maior série de ficção científica que a TV já teve o prazer de transmitir. Esse mistério, seu meio, seu fim, e sua resolução, teriam a difícil tarefa de entregar uma mensagem que fizesse jus ao significado da obra em sua totalidade.
À primeira vista, começamos o especial com uma representação bastante fiel e apaixonada da primeira cena da série clássica. Com um oficial de polícia lentamente adentrando o local onde a TARDIS está escondida. Já aqui, ele passa por uma escola onde Clara, nossa companion da sétima temporada, está dando aula. Posteriormente encontrando-se com o Doutor na TARDIS, e planejando mais uma aventura. Até que um helicóptero leva a caixa de polícia para um museu no centro de Londres, onde a UNIT pede ajuda ao Doutor para investigar um misterioso quadro que carrega em sua pintura tecnologia de Gallifrey, o planeta natal do viajante do tempo.
O Doutor da Guerra
A princípio, o quadro é nada mais, nada menos, que a queda de Arcadia. A segunda maior cidade de Gallifrey, que caiu no último dia da Guerra do Tempo.
A Guerra do Tempo foi um conflito multi-dimensional e multi-temporal entre os Senhores do Tempo e os Daleks, um conflito descrito como tão destrutivo que ameaçou a toda a realidade. Em outras palavras: as consequências da Guerra englobam a trama de toda a série atual de Doctor Who, já que o Doutor foi o responsável pelo fim da Guerra, em um misterioso evento onde fez seu planeta natal queimar com todos os Daleks e Senhores do Tempo presentes.
Na última cena da sétima temporada, vemos um misterioso e abatido Doutor, interpretado por John Hurt. O Décimo Primeiro Doutor o descreve como aquele que quebrou a promessa ética do Doutor, lutando na Guerra do Tempo e destruindo seu próprio povo para acabar com ela.
The Day of the Doctor mergulha no arco e na psique do Doutor da Guerra de John Hurt. Foi em Arcadia que ele decidiu dar um fim a tudo isso, roubando um artefato que podia alterar a realidade chamado The Moment. O grande “porém” é que este mesmo artefato ganhou consciência, e ele escolhe fazer o Doutor da Guerra se encontrar com o Décimo e o Décimo Primeiro no futuro através de portais. Para talvez, assim, mudar de ideia e não destruir Gallifrey.
Novos e velhos rostos
Em seguida, os três se encontram em uma Inglaterra vitoriana, onde o Décimo Doutor está tendo um caso amoroso com Elizabeth I… ou seriam duas Elizabeths?
Uma delas é um Zygon, uma criatura alienígena capaz de mudar de forma. Liderando seu povo. Os Zygons saíram de quadros no mesmo museu onde o Décimo Primeiro estava, para invadir e conquistar a Terra do Século XXI. Os Doutores precisam lidar não só com seus demônios pessoais ligados ao Doutor da Guerra, como também lidar com a ameaça Zygon.
De antemão nos é entregue um roteiro bastante competente que alterna entre os Doutores no passado e Clara com a UNIT no futuro, tentando controlar os danos causados pelos Zygons. Esta é uma história sobre crimes de guerra, inimigos, adversários, e a coragem de confrontar e aceitar o seu passado.
Nesse sentido, o passado e o segredo sujo do Doutor é o personagem de John Hurt. Um personagem perturbado pelas próprias atrocidades cometidas na guerra, que nem mesmo se considera um Doutor. Sendo confrontado pela The Moment, personificada em Rose Tyler, para se encontrar com seu futuro e, assim, mudar o seu presente monstruoso.
Que direito o Doutor tem de destruir Gallifrey e tirar todas essas vidas? Que direito tem ele de condenar suas futuras encarnações, que serão perturbadas e traumatizadas por esse evento? Esse é um dilema muito bem desenvolvido, ganhando gás pela interpretação fantástica de John Hurt, uma das melhores, talvez a melhor de todo o especial.
Hurt consegue fazer o espectador se importar com sua trágica existência. É só ao lado de suas futuras encarnações que ele passa a revelar mais traços de sua personalidade, se surpreendendo consigo mesmo, se descobrindo, e por fim, tendo um desenvolvimento de personagem absolutamente perfeito.
Fazendo justiça ao personagem
Primordialmente explorando e comparando vários elementos do Doutor e da Guerra do Tempo, esta também é uma história sobre seus valores morais. O clímax do especial se resume ao Doutor mudar sua história de forma bruta, mesmo que isso possa destruir o tempo, ou matá-lo no processo.
A direção de Nick Hurran se destaca, mesmo com um orçamento limitado. Ele consegue criar uma identidade visual muito poderosa em Arcadia, por exemplo, representando o inferno que o Doutor enfrentou durante tantos anos na Guerra.
Já o roteiro de Steven Moffat não só é ótimo em mesclar esses núcleos dos Doutores, como também é ótimo em criar relações orgânicas entre eles, com interações e falas muito divertidas que um fã de longa data vai amar. Bem como ele identifica, reconhece, e estuda o futuro de Doctor Who com seu passado.
É realmente uma narrativa muito competente no que se propõe a fazer, e talvez seja o pico de sua escrita como showrunner de Doctor Who.
Apesar de não ter conseguido juntar todos os Doutores para os momentos finais, Moffat e Hurran entregam cenas verdadeiramente lindas. Cenas que conseguem emocionar qualquer um que tenha investido tempo nessa louca viagem pelo espaço-tempo, trazendo velhos Doutores, velhas mensagens de formas sutis e agradáveis.
Não só o mistério inicial serve um proposito muito maior que entraja a persona do Doutor, como cada núcleo também é apresentado e encerrado de forma muito esperta.
Veredito
Doctor Who: The Day of the Doctor é o melhor especial que esta série já ofereceu, por conta de uma narrativa que se constrói, se desenvolve e se encerra com toda a aura da obra por trás de si. Com uma direção competente, um roteiro maravilhoso e uma trilha sonora épica, The Day of the Doctor explora o melhor e o pior do Doutor.
Mesmo que não esteja atualmente disponível no Globoplay, você ainda pode assistir às novas temporadas de Doctor Who aqui.