Dirigido por Luca Guadagnino, Até os Ossos chegou aos cinemas brasileiros na última quinta (1). O longa, baseado na obra homônima de Camille DeAngelis, já rendeu o Leão de Prata de Melhor Direção para Guadagnino no Festival de Veneza 2022; além de ter sido ovacionado por 11 minutos. E justamente por tratar de temas polêmicos como o canibalismo, por exemplo, gera aquela dúvida: será que vale mesmo a pena?
No filme, Maren (Taylor Russell), abandonada tanto pela mãe quanto pelo pai, decide rodar o país à procura de respostas. Nesse tempo, seu caminho é cruzado por Lee (Timothée Chalamet), que possui as mesmas tendências que ela, e juntos eles vivem um relacionamento intenso na estrada.
A violência desconcertante de Até os Ossos
Filmes que mostram partes do corpo humano sendo usadas como alimento naturalmente causam incômodo. Quando somos expostos ao canibalismo, é impossível não se contorcer ao imaginar como aquilo deve ser doloroso a quem está sendo devorado, ainda mais por como o cinema também tem esse papel de exercitar nossa empatia. Dessa forma, é bom assistir ao filme sabendo que é necessário ter estômago forte e estar preparado para absolutamente qualquer coisa. Não é nem um pouco fácil de digerir.
Com o início de uma história relativamente normal, logo existe a subversão que dá vida ao grande conflito. É impressionante como somos encaixados em uma cena de tensão sexual, para logo em seguida virar uma das coisas mais desconfortáveis e surpreendentes de se ver em tela. Assim, as reações ao redor da protagonista e como isso vai moldar sua trajetória têm sentido. Principalmente por como há espaço para aplicar as boas ideias no desenvolvimento.
Conceitualmente falando, os semelhantes à Maren são completamente assustadores, devido às regras estabelecidas a eles. Quando Sully está em cena, por exemplo, a atmosfera muda, pois a presença de Mark Rylance é angustiante e ele passa um ar de maníaco retraído. E mesmo que a história siga um rumo diferente do que aguardávamos, as respostas encontradas das dúvidas ao início são absurdamente medonhas, ainda fazendo parte da construção das temáticas. Nem sempre precisamos ver para sentir o impacto, bastando apenas usar o poder da imaginação.
Nesse sentido, a violência é tanto visual quanto imaginária, porque completar essas situações tão sinistras com a mente é tão assustador quanto assisti-las. A produção se destaca muito, principalmente pela veracidade no sangue usado. Junto disso, os desmembramentos, que incluem pele sendo arrancada e mordidas fortes, irão te afligir. A reação das vítimas faz parecer que aquela dor nunca vai acabar, é gritante. Então, o filme é uma grande zona de desconforto, com detalhes que realmente incomodam. Mas será que é só isso?
Uma história… bonita?
Apesar de tudo isso, ainda temos uma história de amor sendo construída. Vale dizer que em momento algum existe uma espécie de vangloriamento dessas atitudes violentas, afinal, o próprio casal principal assume essa obsessão quase incontrolável. Mesmo que dentro desse universo realmente existam os desvairados, as pessoas com quem mais passamos tempo conseguem transmitir afeição.
Então paramos para pensar se seria errado torcer por eles. Quando a história os destrincha, notamos como ambos são carregados de trauma e culpa. A própria Maren questiona a todo momento o que está fazendo, trazendo um traço de lucidez para essa concepção tão absurda. Assim como Lee, que em determinado momento dá a entender que desenvolveu essa condição como um mecanismo de defesa, nunca conseguindo dar fim (ao contrário de Maren, que vem de uma condição biológica). Ou seja, esses personagens se tornam complexos conforme são moldados em cada cena, e acabamos nos perguntando: eles não merecem ser felizes?
Essa confusão é fascinante. Eles estão perdidos, mas ainda podem se encontrar e finalmente tentar viver o que seria uma vida normal. Assim, o terceiro ato acaba por apresentar pequenas falhas. Mesmo que tenhamos um tom angustiante encaixado nos últimos minutos, com a tamanha competência citada anteriormente; o retorno de um determinado personagem soa abrupto e questionável. Pois ele parece funcionar muito mais como apenas uma peça de introdução aos conceitos canibais desse universo, do que propriamente alguém relevante na narrativa, que seria responsável por dar fim a ela.
Portanto, Até os Ossos é um dos filmes mais tensos de 2022. O simples fato de terem pessoas ao redor de quem estamos acompanhando, automaticamente gera medo. Ainda assim, este não é um filme de terror, embora seja bastante gráfico e tenha ideias perturbadoras. Sendo uma história que trata de problemas humanos e como eles podem nos definir, temos uma excelente construção dramática e até romântica. E novamente: vá preparado!