Dirigido por Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira (19), e já devemos antecipar: vá prestigiar na tela grande!
Baseado na obra homônima de David Grann, a história pautada em fatos gira em torno de um fragmento sombrio pouco falado da história norte-americana. O desenvolvimento do projeto começou em 2016 pela Imperative Entertainment, sendo que Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio se envolveram um ano depois. Mas após vários retrocessos e atrasos em decorrência à pandemia de COVID-19, a produção foi programada para começar em 2021 com a Apple TV+ confirmada para financiar e distribuir o filme com a Paramount Pictures.
É claro que em breve haverá a estreia com exclusividade no streaming Apple TV+, mas é realmente uma vitória termos um filme de 3 horas e 26 minutos nas telonas. Ainda mais com tantos gênios reunidos: Martin Scorsese, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio.
O longa teve sua estreia na 76ª edição do Festival de Cannes, onde foi aplaudido por 9 minutos consecutivos. Mas afinal, sobre o que é a história e o que exatamente pode te instigar a assistir? Confira a nossa crítica abaixo:
No filme, situado em 1920 na região de Oklahoma, misteriosos assassinatos começam a ocorrer na tribo indígena de Osage, uma terra rica em petróleo. O caso passa a ser investigado pelo FBI, uma agência criada recentemente.
Acredite: essa breve sinopse é o bastante para você ir assistir ao filme e ser capturado por ele, pois tudo o que é feito com ela, é, em todas as letras da palavra, genial.
O tributo de Scorsese em Assassinos da Lua das Flores

Acima de tudo, este filme soa como uma grande homenagem de Scorsese. Pois, aqui, existe tudo aquilo que ele sempre fez tão bem em sua filmografia. Basicamente, ele lida novamente com um filme de máfia. Sua intenção não busca um mistério a ser desvendado, visto que já sabemos quem são os assassinos do título na primeira meia hora de filme. Mas é interessante como são trabalhadas determinadas tradições nesse estilo que ele mesmo ajudou a consolidar. Ou seja, personagens contraditórios, ótimas execuções de planos questionáveis contra algo ou alguém, inevitáveis traições e a condenação de todos esses atos.
Porém, mesmo com essa fórmula presente, todos os filmes tinham um aspecto que diferiam um do outro, e isso segue aqui. Dessa forma, o pano de fundo para qual a história se passa é estabelecido com muito respeito, pluralidade e conhecimento que o diretor apresenta. Ele constantemente busca adequar essa cultura ao público, com os rituais, a língua nativa e elementos da crença que levam a uma faceta mais espiritual. Essas simbologias são tratadas, de modo geral, com melancolia, dado o contexto de tantas mortes; embora também tenha um tom de celebração.
Nesse sentido, as mortes e os corpos não impactam por uma tratativa gráfica e apelativa, mas por um aspecto mais clássico em que são encenadas de longe e captam o espectador pela frieza e o modo apático realista com que se tem uma última visão daquilo. E esse resgate do diretor não vem só de sua filmografia, mas até de outras abordagens que podem ser comparadas a outros clássicos do cinema. O núcleo indígena é ilustrado praticamente de maneira documental, com frequentes fotos e vídeos que carregam uma história forte por trás. É semelhante ao que Eduardo Coutinho faz em Cabra Marcado Para Morrer, utilizando o peso do registro como parte da narrativa. Ou mesmo as festividades como cenário de algo impróprio acontecendo, digno de um O Poderoso Chefão.
Um verdadeiro exemplo de cinebiografia

Cinebiografias de modo geral tendem a ser extremamente vagas em passagem de tempo e aprofundamento na psique dos personagens. Contudo, em todas que o Scorsese já trabalhou existia uma sensação única que, felizmente, volta a acontecer aqui: o universo aplicado é tão rico em substância que não parece uma cinebiografia, mas algo criado do zero pelo cineasta. Pois, a partir dos fatos, ele utiliza suas ferramentas narrativas para explorar as emoções dos personagens e consequentemente as do espectador. Um detalhe que já virou clichê do gênero é subvertido aqui com muita originalidade, afinal, é frequente vermos uma tela preta com um letreiro contando como tudo realmente acabou, junto de fotos reais. Todavia, o filme possui esse desfecho realizado com criatividade e conta com uma das participações mais significativas que poderiam haver, assumindo uma autoconsciência e finalizando verdadeiramente perfeito.
Além do encontro dos dois atores que mais trabalharam com o Scorsese na vida, Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, agora, em um filme do próprio. Esse momento é filmado como um ápice atingido de duas gerações que finalmente estão cara a cara. DiCaprio interpreta um de seus únicos papéis na carreira em que ele é passivo, adquirindo todos os trejeitos de um sujeito tolo, sem confiança e que nunca sabe como agir; suas gravatas floridas transparecem bem esse jeito mais despojado. O oposto de De Niro, que está mais em forma do que em nunca e encarna cautelosa e elegantemente este senhor frio, sarcástico e absurdamente seguro. Essa relação contrastante de experiência faz dessa dupla interessante em cena, e claro que ambos os atores entregam essa concepção com excelência. E não tem como não rasgar elogios a Lily Gladstone, que encanta por como assimila a degradação de sua personagem e verbaliza peso em suas passagens.
É lindo como a história está sendo contada também através da imagem. Não somente nas transições visuais, mas em como a iluminação quente é usada como artifício do que é mal ou duvidoso. Somada à iluminação natural do dia em ambientes escuros, que faz com que tenhamos uma elucidação da verdadeira natureza dos personagens, seja perversa ou culpada. Outro fator de destaque da linguagem de câmera, que respeita todos os espaços e todos aqueles que terão uma forte presença sobre eles, sempre os procurando e os seguindo antes de tomarem uma ação propriamente dita.
Portanto, Assassinos da Lua das Flores é, simplesmente, o melhor filme de 2023. Ele utiliza da nostalgia para quem é apaixonado por um cinema convencional e eficiente, se atualizando para uma linguagem madura. É uma verdadeira honra podermos presenciar um cineasta tão potente, experiente, cuidadoso e respeitoso como Martin Scorsese, que em seus plenos 80 anos, ainda busca a essência do que o forma cinema e nossa relação com a experiência através de seu amor por essa arte. E que, por causa disso, ainda cria obras-primas que serão reverenciadas quando nem ele e nem nós estivermos mais por aqui.